quarta-feira, 27 de abril de 2011

Bendito Saramago



Não fosse o olhar curioso à algumas figuras decorativas de um restaurante, chamado O Elefante, que compunham uma espécie de comitiva e itinerário, e  também o esforço de se saber mais a fundo a que história se remetia, a Literatura não teria conhecido uma de suas expressões contemporâneas que mais se aproximam de uma obra prima. Não fosse o dono daquele olhar curioso o escritor José Saramago talvez a história de uma viagem de um elefante de Lisboa a Viena apenas alcançaria o contorno de humor que um conto repleto de elementos inusitados oferece. Pois, A viagem do elefante abrange um horizonte muito além da graça de um estranho evento histórico, compreende questões da vida humana, abarcando o nível da crítica social com os lampejos peculiares da prosa de Saramago.

Ainda nos é recente a morte de Saramago, em junho de 2010, aos 87 anos. O autor, natural do Ribatejo, em Portugal, publicou somente mais um livro após “A viagem do Elefante” (2008) - o polêmico “Caim” (2009). É pela ausência de polêmica que a história narrada em A viagem do Elefante se destoa da voz séria de suas outras obras, como em “O Evangelho Segundo Jesus Cristo” (1991) e “Ensaio sobre a Cegueira” (1995). 

Foi somente após um intervalo de meses após o início da escrita do livro, devido às limitações físicas que uma doença respiratória impôs sobre o autor, que ele pôde concluir A viagem do Elefante. A despretensiosa história se passa no ano de 1551, quando um elefante chamado Salomão, oriundo da Índia, cujos donos são o rei D. João III e sua esposa Catarina d’Áustria, é escolhido para presentear o arquiduque austríaco Maximiliano II pela união com a filha do imperador Carlos V. A viagem do paquiderme tem início após a prontidão do guia de Salomão - o cornaca Subhro, vindo da Índia juntamente com o elefante, em conduzir o animal pelos caminhos do continente europeu. É pelas mãos de um autêntico contador de histórias, como o é Saramago, que a modéstia de uma simples história é envolvida por um raro arranjo de sabedorias através do poder da ficção que a arte literária é capaz de dispor, e que, cujo gênero escolhido é, não à toa, o conto - motivo o qual veremos no decorrer desta resenha.

Para o teórico alemão Walter Benjamin, em O narrador, de 1936, a arte de narrar está intimamente relacionada à faculdade de intercambiar experiências. O narrador para Benjamim é o homem sábio e experiente, que se coloca em posição privilegiada em que tudo vê e sobre tudo medita e tem a habilidade de transmitir suas histórias aos mais jovens. Neste ponto é que, primeiramente, Saramago se encontra alinhado à idéia de narrador do crítico alemão. Como vimos, o autor escreve A viagem do elefante em idade avançada e denomina ele mesmo a sua história como um conto. A explicação de Saramago é de que seu livro não apresenta as características fundamentais de outro gênero, como por exemplo, o romance. Entretanto, podemos enxergar, por meio da teoria de Benjamin, um viés explicativo da utilidade do conto pelo autor lusitano.

Entre as narrativas escritas, Benjamin enaltece as que mais se aproximam da tradição oral e popular. A viagem do elefante se enquadra nessa consideração por ser um conto com uma narrativa próxima à oralidade e que cumpre a tarefa apontada por Benjamin - a saber, a comunicação de uma experiência. E esta é alcançada por meio de recursos literários bem presente no estilo de escrita de José Saramago - a utilização de provérbios e metáforas. É importante apontar sucintamente os aspectos idiossincráticos da prosa saramaguiana: foi a partir da obra Levantado do Chão (1980), que o autor passou a substituir toda a pontuação por vírgulas e pontos finais, além de introduzir letras maiúsculas logo após a vírgula quando se tratar de um discurso direto de algum personagem, (a mudança do interlocutor é indicada da mesma maneira). Portanto, sua própria estética textual contribui para uma oralidade na narrativa.

Os provérbios são características presentes na obra de Saramago e, em A viagem do elefante, é proferido pelo próprio narrador e também por personagens de quem o leitor menos espera palavras de sabedoria. A voz que o autor confere a personagens excluídos da historiografia acadêmica, ou oficial, como ao cornaca Subhro, o faz ter um papel dominante num evento histórico que envolve duas importantes coroas reais da Europa no século XVI. O provérbio aparece na expressão, “A vida é triunfo e olvido”, dito pelo condutor de Salomão; ou pela memória de do secretário Pêro de Alcáçova Carneiro das palavras do pai - “Cuidado, meu filho, uma adulação repetida acabará inevitavelmente por tornar-se insatisfatória, e portanto ferirá como uma ofensa.”. Saramago salva sua narrativa da morte e recupera a sabedoria ao emprestá-la à voz de figuras de quem o leitor não esperaria algo de tanto valor.

Sendo um romance uma narrativa vinculada essencialmente a uma cultura da escrita, podemos inferir o motivo de Saramago intitular sua obra como um conto. Todos os recursos utilizados em A viagem do elefante denotam uma forma de prosa relacionada à tradição oral. Benjamin afirmou ainda em O narrador que “os narradores gostam de começar sua história com uma descrição das circunstâncias em que foram informados dos fatos que vão contar a seguir”, característica presente exatamente antes do início da história da viagem do paquiderme pela Europa. Este fator nos leva a um último pensamento: Saramago é o próprio narrador dessa história. Sensação que, creio eu, todos têm durante a leitura do livro; e idéia proferida pelo próprio autor de que narrador e autor representam a mesma identidade. Algumas referências a eventos ou conhecimentos que nos são contemporâneos corroboram esta idéia - como a passagem sobre os estrangeirismos das palavras, ou acerca das medidas de tempo utilizadas pelos personagens do passado medieval. 

A expectativa de uma trama vivenciada em diversas localidades da Europa, com um profundo desenvolvimento de diversos personagens pela viagem de um elefante é vencida por um esforço menos espetacular, porém mais harmônica com o momento particular de José Saramago. É sob a presença cada vez maior da morte, trazida pelo próprio tempo de vida e de uma doença, que o autor decide por contar uma história em que possa exercer a função que talvez seja a mais aprazível para um escritor sábio e experiente como ele: a de um “narrador intruso”. Uma história que a muitos passaria – e de fato passou, despercebida. A viagem do elefante nos apresenta um narrador-autor que se diverte com a história, e que diverte a seus ouvintes-leitores. É uma experiência agradável a nós, leitores, ao nos depararmos com a rica partilha da experiência de vida, com seus mais diversos ensinamentos, demonstrada pelo narrador e pelos personagens mais excêntricos – entre eles, o elefante, a quem Saramago nos faz ser cativados e ter apreço. Além disso, a quem nos faz perceber que nós todos, inclusive o autor, teremos uma vida como a de Salomão, com quedas, ascensões, vitórias e esquecimentos.

5 comentários:

Amora disse...

E voltaste, meu caro. Com louvor. Saramago é uma de minhas matrizes literárias. Seu livro "Caim" me surpreendeu por tanta lucidez e bom-humor, no auge dos seus quase 90 anos. Mas não chegou lá. Lamentei. Porém esse do Elefante ainda não li. Tá na lista dos "Quinhentos livros pra se ler antes de morrer." Menos um pra você! Muito bom, Lucas. Só uma dica de leitora: Cuidado com as frases extensas demais. Faz a gente se perder.

Até mais.
Aline.

Ps.: É permitido não elogiar, somente? =/ rs.

lucas lyra disse...

Aleluia! Pela 1ª vez na história deste blog recebo uma crítica construtiva! De verdade mesmo. Já não aguentava mais os comentários clichês! Sua crítica é muitíssima bem vinda! Mas confesso que foi proposital as frases longas, quis mudar um pouco meu jeito de escrever, assim a gente caminha pelo mundo da escrita.
Quero muito ler Caim, e também todos do Saramago! rs
Muito obrigado, Aline! Até a próxima!

Tiago M. Franco disse...

A Viagem do Elefante é, quanto a mim, uma belíssima obra, mas para mim "O Memorial do Convento" está uns níveis acima.

lucas lyra disse...

Ainda não li Memorial... mas deve ser bem pesado e polêmico, né. "A viagem..." é mais divertido e tal...

Tiago M. Franco disse...

Não, o Memorial está longe de ser um dos livros mais polémicos do autor. É um livro de leitura obrigatória para alunos no 12º ano aqui em portugal. Os seus livros mais polémicos são "O Evangelho Segundo Jesus Cristo"( tão polémico que o autor em protesto com o tratamento que o governo português teve com ele foi viver para a ilha espanhola de Lanzarote) e mais recentemente Caim.